O economista-chefe do BBVA Research, Miguel Cardoso, nos oferece uma visão aprofundada da situação econômica da Espanha em 2024, com foco em como o país tem lidado com suas contas públicas após o período conturbado da pandemia de COVID-19.
Um Primeiro Olhar Positivo, Mas Cauteloso:
Em 2024, o que o governo gastou a mais do que arrecadou (o famoso “déficit público”) da Espanha ficou em torno de 2,8% de tudo o que o país produz (o Produto Interno Bruto, ou PIB).
É importante notar que esse número não inclui os gastos extras que o governo teve para ajudar as pessoas afetadas pelas inundações que aconteceram em outubro do ano passado. O mais interessante é que esse nível de “desequilíbrio” nas contas públicas é exatamente o mesmo que a Espanha tinha em 2019, antes de a pandemia “bagunçar” a economia mundial.
Quando comparamos a Espanha com o restante dos países que usam o euro (a chamada “Zona do Euro”), vemos que, em média, esses países tiveram um desempenho pior nas suas contas públicas, com um desequilíbrio dois pontos percentuais maior do que tinham cinco anos atrás. A dívida pública da Espanha, ou seja, o total que o governo deve, também se manteve em níveis parecidos com os de 2019.
Num primeiro momento, esses resultados podem parecer muito bons. Afinal, passamos por uma pandemia que exigiu que o governo gastasse muito dinheiro para ajudar a população e a economia. O fato da Espanha ter retornado aos níveis de déficit e dívida de antes da crise em um período relativamente curto é, sem dúvida, um ponto positivo.
No entanto, Miguel Cardoso nos convida a olhar para esses números com um pouco mais de cautela. Ele argumenta que, durante todo esse processo de recuperação, a Espanha perdeu algumas boas oportunidades de organizar suas contas de uma forma que evitasse problemas sociais no futuro.
Em outras palavras, apesar dos números parecerem bons agora, a maneira como a recuperação aconteceu pode ter deixado algumas “brechas” que podem gerar dificuldades mais adiante.
A decisão de gastar para enfrentar a pandemia
A decisão do governo espanhol de usar o seu dinheiro (a chamada “política fiscal”) para tentar diminuir o impacto negativo da pandemia não é algo que gere muita discussão. Naquele momento, havia muita incerteza sobre o futuro das empresas e a saúde das pessoas era a prioridade.
Era justificável que o governo usasse suas reservas para ajudar as pessoas a terem dinheiro para gastar (apoiar a “demanda interna”) e garantir que houvesse recursos para cuidar dos doentes, evitar que mais pessoas se contaminassem e avançar na vacinação. Tudo isso, é claro, custou caro e fez com que tanto o déficit quanto a dívida pública aumentassem bastante.
Além dos gastos diretos com saúde e auxílio emergencial, o governo também ofereceu garantias para que as empresas pudessem conseguir empréstimos mais facilmente. O objetivo era evitar que empresas que eram saudáveis antes da crise falissem por falta de dinheiro durante a pandemia.
Finalmente, a Espanha também recebeu ajuda financeira da União Europeia, através de um programa chamado Mecanismo de Recuperação e Resiliência. Esse programa foi resultado de um esforço conjunto dos países da zona do euro para ajudar aqueles que foram mais afetados pela pandemia, como a Espanha.
A economia espanhola se recuperou de forma relativamente rápida, em parte graças a todas essas medidas. Essa recuperação forte permitiu que o déficit e a dívida voltassem aos níveis de antes da pandemia em apenas cinco anos.
O aumento “permanente” dos gastos do governo
Apesar da recuperação, as ações tomadas pelo governo durante a pandemia levaram a um aumento dos gastos com o consumo público (o que o governo gasta para funcionar, como salários de servidores) e com as transferências de renda (como aposentadorias e auxílios).
O que preocupa é que esse aumento parece ter se tornado uma característica “permanente” da economia espanhola. Por exemplo, o consumo público já está mais de 20% acima do que era em 2019, principalmente por causa do aumento dos salários dos funcionários públicos, especialmente nas regiões autônomas da Espanha (como se fossem os nossos estados).
Em relação às transferências, a decisão de manter o poder de compra das aposentadorias, juntamente com o aumento do número de pessoas se aposentando, fez com que a renda de uma parte significativa das famílias se mantivesse estável.
O aumento “inesperado” da arrecadação de impostos: uma boa notícia com ressalvas?
Todo esse aumento de gastos do governo só foi possível porque a arrecadação de impostos também cresceu de forma extraordinária. Houve um aumento tanto nos impostos diretos (como o imposto de renda) quanto nas contribuições sociais (como as que pagamos para a previdência).
O aumento das contribuições sociais está ligado a mudanças no sistema de aposentadorias. No entanto, a maior parte do aumento da arrecadação veio do Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF) e do Imposto sobre Sociedades (que seria o nosso IRPJ).
Normalmente, a arrecadação desses impostos acompanha o crescimento do PIB de forma proporcional. Se o PIB cresce 1%, espera-se que a arrecadação desses impostos também cresça cerca de 1%. No entanto, na recuperação pós-pandemia, a arrecadação cresceu mais do que o esperado em relação ao crescimento da economia.
Uma das explicações para isso é que mais atividades econômicas se tornaram formais após a pandemia, talvez incentivadas pela digitalização dos pagamentos e pela necessidade de ter as contas em ordem para receber as ajudas do governo. Outra razão é que o governo implementou medidas para aumentar os impostos em alguns setores específicos.
No entanto, a maior parte desse aumento da arrecadação veio do aumento dos salários e do fato de que mais pessoas passaram a ganhar salários mais altos, entrando em faixas de imposto de renda com alíquotas maiores.
O que pode acontecer com o déficit?
O problema é que esses fatores que impulsionaram a arrecadação de impostos podem começar a perder força no futuro. Se isso acontecer, a melhora do déficit público pode ficar ameaçada, especialmente se o governo continuar gastando no mesmo ritmo dos últimos anos.
A inflação, por exemplo, está começando a diminuir, o que deve limitar o aumento rápido dos salários. Se a economia espanhola realmente desacelerar nos próximos meses, como alguns especialistas preveem, o ritmo de crescimento da arrecadação de impostos também deve diminuir.
Aqueles fatores “extraordinários” que ajudaram a aumentar os impostos em certos setores já se normalizaram. Além disso, alguns desses impostos extras nem foram renovados pelo governo. E também não se espera que a formalização da economia que aconteceu durante a pandemia continue no mesmo ritmo agora que a digitalização dos pagamentos está seguindo um caminho mais suave.
A importância de controlar os gastos
É nesse cenário que o governo espanhol se comprometeu a fazer com que boa parte dos seus gastos cresça menos de 3% ao ano, em média, nos próximos anos. Essa taxa de crescimento é menor do que a expectativa de crescimento do PIB nominal (que inclui a inflação), que é de 4%.
Miguel Cardoso argumenta que controlar os gastos dessa forma é uma boa política econômica. Se o aumento dos gastos do governo foi justificado para ajudar a economia durante a pandemia, agora que a economia está crescendo novamente e já superou os níveis de 2019, o mais lógico seria que o governo adotasse uma política de controle do déficit tão forte quanto a que foi necessária durante a crise. Isso permitiria que a Espanha juntasse “reservas” para enfrentar futuras crises econômicas.
Por que orçamentos transparentes e acordos políticos são cruciais para o futuro da Espanha?
Para conseguir controlar os gastos, é fundamental que todos os níveis do governo (federal, regional, municipal) tenham orçamentos claros e bem definidos. Sem esses orçamentos, não será possível saber exatamente como o déficit está sendo reduzido.
Além disso, a forma como a arrecadação de impostos aumentou pode não ser a mais justa ou a mais eficiente para a economia. O aumento da arrecadação acabou evitando uma discussão mais profunda sobre se o governo precisa cortar gastos, em quais áreas e com quais objetivos.
Como esses detalhes não foram amplamente discutidos no Parlamento e não houve um acordo político abrangente sobre o assunto, existe o risco de que a forma como o governo vai tentar equilibrar as contas não tenha o apoio da população.
Isso é importante porque essas medidas podem afetar a quantidade e a qualidade dos serviços públicos, ou levar a um aumento ainda maior dos impostos, o que teria consequências para o crescimento da economia e para a distribuição de renda, podendo gerar tensões sociais.
Conclusão: evitar gastos permanentes e buscar consenso
Em resumo, o perigo para o futuro é que boa parte do aumento dos gastos do governo que aconteceu durante a pandemia se torne permanente, justificado pelo bom desempenho da arrecadação de impostos nos últimos anos. Uma política de gastar mais do que se arrecada (política fiscal anticíclica) fez sentido no período logo após a pandemia.
Contudo, agora que a economia está crescendo e já superou os níveis de 2019, o mais sensato seria reverter parte desse estímulo. Para evitar problemas sociais, é urgente que haja um acordo político que permita reduzir a fragilidade da economia espanhola, diminuindo o déficit e a dívida pública.
Ignorar essa necessidade seria perder uma oportunidade importante, jogar para o futuro o esforço que precisa ser feito agora e, possivelmente, aumentar o sacrifício que a sociedade terá que enfrentar mais tarde.